Remoção do acervo de Haroldo de Campos é ‘inaceitável’, dizem pesquisadores

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Remoção do acervo de Haroldo de Campos é ‘inaceitável’, dizem pesquisadores

Carta aberta pede o retorno da coleção à Casa das Rosas e afirma que transferência para Barueri praticamente impossibilita o acesso

29abr2025 • Atualizado em: 30abr2025

Um grupo de intelectuais e pesquisadores estrangeiros que estudam a obra do poeta concretista Haroldo de Campos (1929-2003) articulou uma carta aberta pedindo ao governo de São Paulo a restituição do acervo do escritor à Casa das Rosas, na avenida Paulista, de onde foi removido em janeiro deste ano. Assinam a carta mais de vinte pesquisadores de universidades da Alemanha, Argentina, Áustria, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, Polônia e Portugal.

Segundo eles, retirar a coleção de 21 mil livros que pertenceram a Campos do local onde ficou nas últimas décadas é uma “decisão inaceitável”, que prejudica o estudo da história intelectual e artística brasileira e ainda “rompe com os termos da doação do acervo negociados em 2004” pela família do poeta, que afirma não ter sido consultada sobre a mudança, conforme noticiado pela Folha de S.Paulo.

O acervo de Haroldo de Campos — que em 1952 criou o movimento da poesia concreta junto com o irmão, Augusto de Campos, e Décio Pignatari — foi transferido para a Clé Reserva Contemporânea, um depósito especializado na conservação de obras de arte, localizado em Barueri, na Grande São Paulo. “Afastar a biblioteca ao município de Barueri dificulta o acesso aos pesquisadores e praticamente impossibilita o acesso ao público”, dizem os pesquisadores no texto. 

A remoção foi chamada por Augusto de Campos de “crime cultural”. Segundo uma nota da Secretaria de Cultura, Economia e Indústrias Criativas do estado, a decisão foi tomada “para garantir condições adequadas para a preservação da coleção de Haroldo de Campos”.

“Sem a presença do acervo de Haroldo de Campos na Casa das Rosas, não pode ser contada devidamente e coletivamente a história da produção cultural no estado de São Paulo, no Brasil e, nas palavras de Augusto de Campos, nessa ‘pátria maior’ da poesia que transcende todas as fronteiras”, concluem os signatários.

A carta aberta foi organizada pelo professor e pesquisador Craig Osterbrock, doutor pelo Departamento de Espanhol e Português da Universidade Yale, nos EUA. “A ideia foi alertar o governo de São Paulo para a importância do acervo para pessoas de todo o mundo e de manter o fácil acesso a ele”, disse Osterbrock à Quatro Cinco Um.

A iniciativa envolveu acadêmicos que se reuniram em 2019 em Yale numa conferência internacional sobre Haroldo de Campos. “Esses professores e pesquisadores compartilharam a carta com outros para quem o acervo de Haroldo é um testamento inesgotável da cultura brasileira e literária”, conta Osterbrock, que soube da remoção do acervo pelas redes sociais e por colegas pesquisadores brasileiros.

Leia a seguir a íntegra da carta:

Carta Aberta ao Governo do Estado de São Paulo e à Secretaria de Cultura, Economia e Indústrias Criativas

Como um grupo de mais de vinte professores e pesquisadores provenientes de Portugal, Áustria, Argentina, Chile, Espanha, Alemanha, Polônia, Colômbia e Estados Unidos, estamos profundamente preocupados com o destino da biblioteca do poeta, crítico e tradutor brasileiro Haroldo de Campos. Esse acervo, armazenado durante mais de vinte anos na Casa das Rosas e assim acessível a pesquisadores brasileiros e estrangeiros, é um testemunho inesgotável de meio século de atividade literária e de intercâmbios artísticos e intelectuais com escritores e pensadores da América Latina, Estados Unidos, Europa e Japão. Como tal, os 21 mil livros da biblioteca de Haroldo de Campos constituem um bem público de inestimável valor; a história intelectual e artística brasileira não pode ser contada devidamente sem o estudo continuado dessa biblioteca. A relegação dela à Clé Reserva Contemporânea, mais de 30 quilômetros do centro da cidade de São Paulo, é uma decisão inaceitável que rompe com os termos da doação do acervo negociados em 2004. Evidentemente, afastar a biblioteca ao município de Barueri dificulta o acesso aos pesquisadores e praticamente impossibilita o acesso ao público.

Quando a família Campos negociou a doação da biblioteca de Haroldo de Campos com o Estado de São Paulo, há mais de duas décadas, foram estabelecidas as bases para uma história comum ao acervo e à Casa das Rosas. A presença do acervo na Casa das Rosas possibilitou a organização de inúmeras exposições, oficinas, palestras e eventos relacionados não só com a obra e a vida de Haroldo de Campos, mas também mais amplamente com a poesia, a literatura, a música, e as artes visuais. A partir das atividades promovidas na Casa das Rosas ao longo dos últimos vinte anos foi construído coletivamente um rico e variado contexto para estudar e entender a vida e a obra de um dos mais importantes poetas, críticos e tradutores do século vinte — um contexto que não pudesse ser articulado se o acervo estivesse afastado da Casa das Rosas e da cidade de São Paulo. A presença da biblioteca na Casa das Rosas representa assim uma condição fundamental para o trabalho coletivo de criar uma consciência histórica da produção cultural. Que a Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo atue para romper o vínculo histórico entre um acervo e um espaço cultural de tanta relevância constitui, para nós e para muitos mais, um fracasso grave da política pública da Secretaria.

Urgimos, então, que o governo do Estado de São Paulo honre o seu pacto com a família Campos e restitua o acervo à Casa das Rosas. Urgimos, também, que a Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas demostre um verdadeiro compromisso com a cultura e cumpra sua missão de “incentivar o acesso à cultura” (segundo se lê na página web da própria Secretaria). Para que a palavra cultura cobre o seu sentido mais pleno de crescimento e florescimento — para que o nosso uso da palavra não caia na banalidade absoluta ou a hipocrisia — é preciso honrar os pactos e cuidar os vínculos históricos que sustentam a atividade cultural. Sem a presença do acervo de Haroldo de Campos na Casa das Rosas, não pode ser contada devidamente e coletivamente a história da produção cultural no Estado de São Paulo, no Brasil e, nas palavras de Augusto de Campos, nessa “pátria maior” da poesia que transcende todas as fronteiras.

Atenciosamente,

Craig A. Osterbrock, Universidade Yale (Estados Unidos)
Gonzalo Aguilar, Universidade de Buenos Aires (Argentina)
Nathaniel Wolfson, Universidade da Califórnia, Berkeley (Estados Unidos)
Verónica Lombardo, Universidade de Buenos Aires (Argentina)
Kenneth David Jackson, Universidade Yale (Estados Unidos)
Craig Dworkin, Universidade de Utah (Estados Unidos)
Laura Cabezas, Universidade de Buenos Aires (Argentina)
Melanie Strasser, Universidade de Viena (Áustria)
Max Hidalgo Nácher, Universidade de Barcelona (Espanha)
Delfina Cabrera, Universidade de Colônia (Alemanha)
Graciela Goldchluk, Universidade Nacional de La Plata (Argentina)
Juan Pablo Canala, Universidade de Buenos Aires (Argentina)
Jerónimo Pizarro, Universidade de los Andes (Colômbia)
Ana Salgueiro, Universidade Católica Portuguesa (Portugal)
Rebecca Kosick, Universidade de Bristol (Reino Unido)
Jasmin Wrobel, Universidade Ruhr de Bochum (Alemanha)
Gabriel Borowski, Universidade Jaguelônica de Cracóvia (Polônia)
Adam Joseph Shellhorse, Universidade Temple (Estados Unidos)
raúl rodríguez freire, Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso (Chile)
Giacomo Berchi, Universidade Stanford (Estados Unidos)
Patricia Lino, Universidade da Califórnia, Los Angeles (Estados Unidos)
Mario Cámara, Universidade de Buenos Aires (Argentina)

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