
A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras
MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM

A FEIRA DO LIVRO 2025, Literatura brasileira,
Gol de craque
Ugo Giorgetti dribla lugares-comuns em coletânea de crônicas e contos sobre tipos inesquecíveis que constituem sua visão épica do futebol
30maio2025 | Edição #94O título do livro dá uma dica do que vem a seguir: Era uma vez o futebol. Como assim? Era uma vez? Mas o futebol está bombando, estádios cheios, patrocínios milionários, arenas caríssimas, dezenas de programas na tv, mesas-redondas em todas as telas, homens e mulheres chutando a bola ao vivo, jogos de todas as ligas mundiais até no celular, apostas eletrônicas engolindo dinheiros… Era uma vez?
Sim, era uma vez. Porque Era uma vez o futebol, de Ugo Giorgetti, não frequenta o futebol que aí está, nem trata de táticas, resultados, rankings, negócios. O autor previne, ainda no começo da coletânea de crônicas e contos: “Vejo o futebol por outro prisma”. Qual? O de mitos, lendas, fábulas, ídolos, zoeira, paixões e campos onde se cultuavam craques — ou, eu quase diria, dos templos onde se endeusavam homens que faziam prodígios com a bola.

Não se fazem mais prodígios? Difícil. Os negócios, as táticas, os esquemas, as trombadas, as escolinhas, as regras inibidoras, o código não escrito que impede dribles “ofensivos” e a falta da liberdade aprendida nos campinhos da várzea impuseram-nos o atual futebol obediente. É a constatação que transmitem as crônicas e os contos de Giorgetti, que passam com engenho, arte, humor, agilidade e cores vivas pontos de vista originais.
Em Era uma vez o futebol, constata-se: Ugo Giorgetti é um craque em driblar o lugar-comum. Ele vê o esporte com olhar de artista — o do escritor e o do cineasta — e não quer só mostrar o que vê, quer aprofundar os significados, compreender, emocionar. Cineasta experiente e autor de filmes premiados, como Festa (1989), Sábado (1995), Boleiros (1998) e O príncipe (2002), Giorgetti percorre em plano geral o espetáculo do futebol e vai selecionando, captando e trazendo para o primeiro plano personagens e elementos que constituem sua visão épica do esporte. Não é o jogo o que vemos, mas o jogador: o craque, o goleiro, o reserva. E o juiz, o torcedor, o treinador, o bandeirinha, o roupeiro, a preleção, o vestiário, o banco de reservas, a camisa, o pênalti, o berro, o choro, o dirigente, o gandula, as câmeras — um mundo.
Muitas crônicas trazem a visão do cineasta colaborando lindamente com o escritor
Entre seus personagens mais saborosos tem destaque o treinador, que resulta ser um inútil necessário, a gesticular enquanto faz o papel de maestro para as câmeras, a substituir jogadores sem resultado prático, até ser substituído ele mesmo, depois de derrotas decisivas, também sem resultado prático. Essa figura aparece em uma dezena de crônicas, como as excelentes “O santo remédio”, “O inglês de Joel Santana”, “O burro” e “Dois nomes”.
Já “O começo e o fim” bate na tecla da emoção. Fala dos bons jogadores que, no fim da carreira, se tornam treinadores: “Esses, quando se retiram também da carreira de treinador, é como se morressem duas vezes. Não há mais nada diante deles”, observa o autor.
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Também antológico é o texto sobre o pênalti, “A maior atração”. A crônica inteira é uma exploração literária do momento em que o jogo de 22 humanos se torna dramaticamente o jogo de dois. “Todos os outros jogadores em campo se reduzem, drástica e subitamente, a torcedores iguais aos das arquibancadas”, diz o cronista. Antes já havia dito, em excelente frase de respeito ao jogo jogado: “O pênalti pertence ao futebol, mas não é o futebol”. Momentos assim, até iluminadores, se sucedem a cada texto.
Milagres
Na crônica “Graças a Deus”, Giorgetti procura compreender o gesto, comum hoje em dia, de o jogador cair de joelhos e abrir os braços para o céu em agradecimento pelo gol, ou, na entrevista pós-jogo, atribuir a Deus “todos os méritos que vinham, no fundo, de seu talento, do seu esforço pessoal”.
O autor confessa que parou de se irritar com esse tipo de cena ao compreender que os jogadores que as protagonizam saíram subitamente da pobreza familiar, da maior carência, direto para a fama e o bem-estar, e “entendem que aconteceu um milagre”. Giorgetti percorre essa ascensão mística/social e conclui: “Se eu fosse um deles, faria a mesma coisa”.
Era uma vez o futebol reúne 132 crônicas escolhidas entre as mais de quinhentas que o autor publicou aos domingos no jornal O Estado de S. Paulo, de 2004 a 2020. Todas feitas no capricho, com escrita elaborada e fechos de ouro. Afinal, Giorgetti gosta de frases que coroam textos deliciosos e os arrematam como um gol. Gol! — quase aplaude o leitor.
Muitas dessas crônicas trazem a visão do cineasta colaborando lindamente com o escritor. Em “Câmeras, ação!”, o cineasta mete mesmo o bedelho, pontificando a respeito da capacidade que as lentes têm de distorcer a realidade, falsear, mentir. Faz isso para lançar divertida dúvida sobre a verdade do var, que era novidade em 2013, ano de publicação do texto.
Baú
O ficcionista Ugo Giorgetti fecha a coletânea com catorze contos, todos escritos nas últimas décadas mas inéditos até agora. Essa parte do livro traz a disparidade das coisas guardadas e as agradáveis surpresas de todo baú. Se alguma coisa parece inacabada, com troca de nomes de personagens ou nomes de ruas substituídos por provisórios pontilhados, se alguma estrutura parece o aproveitamento de um argumento para um curta, há outros contos em que a mão firme do autor assegura a qualidade literária das narrativas.
“Parabéns a você” é um deles, sobre a idade que chega para um jogador outrora no auge; “Reserva” é outro, sobre um reserva nato, acostumado ao banco de suplentes e confortável nessa posição. “O ídolo” é a bonita história de um goleiro amado pela torcida e não valorizado pela diretoria mesmo depois de quinze anos de bola. “Dezesseis de julho de 1950” relata as enganosas lembranças de um idoso a respeito da sofrida derrota do Brasil para o Uruguai naquela Copa.
O leitor fecha o livro satisfeito, mas com certa melancolia pelo que se perdeu no futebol. Sem sofrimento, porém, até com discreto sorriso, como quem concorda: foi bom, não foi?
A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu
A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.
Matéria publicada na edição impressa #94 em junho de 2025. Com o título “Gol de craque”
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