
Literatura brasileira,
O espírito de Machado de Assis
Escritor volta ao mundo dos vivos, no Rio de Janeiro do século 21, em novo romance de Sérgio Rodrigues
27set2022 | Edição #62A vida futura, de Sérgio Rodrigues, é um livro cômico para ser levado a serio, por tocar corajosamente em temas nada engraçados e bastante polêmicos: raça, gênero e decadência generalizada. É também um livro ousado, narrado com erudição, sutileza e ironia por ninguém menos que Machado de Assis. Desafiando os adeptos do lugar de fala, Rodrigues se apropria da personalidade, das ideias, do estilo e, principalmente, da linguagem de Machado: “O inferno sob medida para os escritores seria a contemplação forçada e eterna da própria obra”.
O livro começa numa nuvem literária, habitada pelos imortais das letras. Lá em cima, José de Alencar, o conservador indignado, convence Joaquim Maria Machado de Assis a voltar ao mundo dos vivos para impedir que uma professora da UFRJ, Stella, publique versões simplificadas de seus principais romances.
A chegada dos dois Jotas (como são chamados) ao Rio de Janeiro no início da pandemia é antecedida por discussões entre escritores canônicos, como Dumas, Flaubert, Nabokov, Dostoiévski e Shakespeare, sobre fazer ou não fazer versões populares de obras primas. Stendhal e Dumas consideram a acessibilidade proporcionada pelas versões simplificadas capaz de conquistar “novos corpos textuais” sendo, assim, a mais alta consagração de um escritor. Em total discordância, Dostoiévski e Flaubert consideram a ideia um retrocesso inequívoco, uma traição ao vocabulário, à sintaxe e ao vernáculo.
De volta ao mundo dos vivos, os Jotas se veem dentro de uma loja decadente na rua do Ouvidor, que ambos frequentavam quando ainda era a mais europeia e elegante das ruas do Brasil. A partir daí tudo é estranhamento e caos, mas também muita ironia e boa provocação ao leitor.
Perdidos nas ruas da capital, os Jotas testemunham uma sequência de cenas desconcertantes para quem considera ter vivido o período charmoso do Rio de Janeiro. O estupro de uma menina de sete anos em frente à Academia Brasileira de Letras, atrás de uma caçamba de lixo, é uma das cenas que registram a perversidade nas relações sociais a ponto de desnortear qualquer monarquista ou republicano do século 19. Quem poderia imaginar que aquilo pudesse dar nisso, uma “massa viscosa e fedorenta”?
O centro da cidade, antiga sede do Império, causa uma dor nostálgica profunda especialmente no monarquista José de Alencar. Mais ainda, o iluminismo, assim como o positivismo, caíram em descrédito. O progresso antes vislumbrado deu lugar a um retrocesso trágico inimaginável. Enquanto Alencar chega a se arrepender por ter deixado a nuvem, Machado, mais realista, distante e cético, pondera tentando confortar o amigo.
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Continuando a caminhada, os dois escritores chegam até o jardim onde um grupo de jovens estudantes conversam. Atentos, os dois tentam decifrar as palavras de um professor que ocupa o centro da roda: grupos interseccionais, lugar de fala, centralidade, não binário, cisgênero, epistemologia decolonial, todes… “Todes? Seria um Deus nórdico?”, Machado pergunta.
Nessa aula a céu aberto, os dois escritores observam o comportamento, as roupas, o linguajar, e descobrem um outro lado da cidade: desinibido e despudorado, com um grau tão elevado de espetacularização e exibicionismo que, por exaustão, induz ao tédio. Mas tudo se altera quando uma estudante, Mariana, declara: “Eu sempre o amei, mesmo antes de saber que Machado era negro”.
‘A vida futura’ é um tributo ao velho mestre e um chamado aos escritores enredados no passado
Machado, instantaneamente apaixonado pela estudante, mas perplexo com o que acabara de ouvir, assiste à cena como se perguntasse: “negro, eu?”. Mas se aquieta ao ouvir sobre o projeto da professora Stella: “Como esperar potência anti-LGBTQI-mais-fóbica de porcos escritores cis eurobrancos?” — que Machado traduziu intuitivamente para concluir: estão apostando em mim, que sou negro.
Mariana, que prefere ser chamada de Mar, nome não binário, é uma estudante negra de trancinhas coloridas, aluna e monitora de Stella. Os Jotas, que desceram à Terra para puxar a perna da professora e assim impedir que seu projeto prosseguisse, acabam por encontrá-la na cama com o amante. A partir daí, o enredo reconstrói a história dessa personagem e de seu parceiro João Pinto, que de malandro passa a miliciano.
Encantado por Mar, e talvez por ter descoberto a potência da sua própria identidade racial, Machado tenta se aproximar dela e descobrir sua história, e assim chegam a uma festa na Rocinha, com militares, milicianos, matadores, jogadores de futebol, pastores evangélicos, políticos, com muito sexo, droga e… funk.
“Luta de clássicos”
A justificativa do projeto de Stella é reescrever os clássicos para ampliar o acesso, mas o propósito da professora é desafiar a tese do seu primeiro marido, professor e mentor, para quem, quando se trata de literatura, quanto mais difícil, melhor. O projeto tem financiamento público e o nome de “Luta de clássicos”. Na verdade, Stella, sem convicção e sem compromisso com a literatura, pretende surfar na onda e obter sucesso acadêmico ao apoiar pautas identitárias e politicamente corretas. É especialmente tragicômico o primeiro encontro na escola de comunicações em que os revisores de Machado discutem como atualizar a frase: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Vale registrar a abertura da reunião por um dos revisores: “O que é legado?”
Rodrigues cutuca o leitor e a si mesmo por meio do personagem Machado: “Refiro-me àquele maluco que se passava por nós, imitando-nos trejeitos, folego, voz, porte, tom, temas, visão de mundo — às vezes até as vírgulas e os vícios, quando não solecismos e as frieiras”. Ao fim e a cabo, quem reescreve Machado é ele mesmo, Sérgio Rodrigues, com o propósito oposto ao de Stella, pois A vida futura é um tributo ao velho mestre e um chamado aos escritores enredados no passado e na procrastinação.
Matéria publicada na edição impressa #62 em outubro de 2022.
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